“Ser ou não ser (uma paisagem), eis a questão”, in Catálogo da exposição “Everywhere is the same sky: uma perspetiva de paisagem na Coleção Norlinda e José Lima”, Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco, Castelo Branco

Ser ou não (uma paisagem), eis a questão

A abordagem da paisagem na arte foi ambígua até ao século XIX. Até esse momento a paisagem foi um pano de fundo, uma actriz secundária de uma peça cujas protagonistas seriam pinturas mitológicas, cenas religiosas ou retratos mais ou menos oficiais. No século XIX, a actriz secundária consegue o papel principal, autonomiza-se, vale por si mesma, sem qualquer necessidade de se complementar com outros temas. Depois de séculos de dependência de acções humanas e sagradas, depois de uma presença acessória e secundarizada, a paisagem passa a ter um tratamento referencial. Atingido o estatuto maior – o de género, a paisagem evoluirá e todas as possibilidades, todas as composições, serão possíveis.

Mas a arte contemporânea não se limitou a tornar a paisagem num novo género espartilhado nas estritas regras das belas-artes. A arte contemporânea conferiu à paisagem a capacidade de se reinventar.
Mas de que falamos quando falamos de paisagem? O que encerra em si este conceito?

A paisagem será sempre um acto construído. Existe na relação entre a natureza, o meio cultural e a estética. A paisagem é o que permite a fruição estética do território, da natureza. 
A paisagem anda também associada a uma ideia de reconciliação do homem com a natureza, com o regresso a um estado quase selvagem de comunhão com o mundo. A paisagem dá-nos a oportunidade de recordar uma imagem familiar – de reconhecer um lugar.

Concluímos então que o termo paisagem está intrinsecamente ligado à noção de território, natureza e arte. A sua emergência situa-se no Renascimento, altura em que o homem passa a ser a medida de todas as coisas. Nesta nova conceção de mundo, o homem surge como organizador (como aquele que estabelece uma ordem) do espaço físico e, portanto, a paisagem passa a ser, fundamentalmente, a relação que o homem (o eu) estabelece com o que o rodeia (o sujeito).
A paisagem será fundamentalmente o resultado da relação do homem com o meio.
Com efeito, a paisagem pode ser entendida como um momento de reflexão sobre o mundo. Um reduto de auto-referências e de projeção do eu.

Na exposição Everywhere is the same sky, apresentamos uma seleção de obras da Coleção Norlinda e José Lima sob o tema da paisagem, adicionando, assim, novas possibilidades de interpretação das obras desta Coleção.
Estas Paisagens confrontam diferentes tempos e diferentes linguagens artísticas. A cada sala do CCCCB corresponde uma abordagem de paisagem. Assim, começámos com as paisagens abstratas, reduto da projeção do eu, até à complexização da relação do homem (do artista) com o meio envolvente.

Nas paisagens abstratas a relação que os autores estabelecem com a paisagem é, em muitos casos, apenas referêncial – tanto pode ser um um título, como por exemplo Lisboa, de António Palolo, ou Campos rectangulares verdes, de Pires Vieira, como uma aproximação formal a alguns elementos da paisagem – um horizonte ou um mar -, como por exemplo nas obras de Cesariny presentes nesta primeira sala de exposição.
Numa outra sala apresentamos uma seleção de “céus”. Que melhor forma de falar de paisagem do que falar do elemento que está (quase) sempre presente quando nos referimos a ela?

Entramos depois na paisagem urbana. Interessou-nos confrontar obras que nos remetem para a relação do homem com o meio urbano. Esta relação do humano/urbano está bem presente nas obras Highway, de João Louro, A room with a view # 13, de Nuno Cera ou, The man in the city, de Richard Longo.
Voltamos a esta (complexa) relação do homem com a urbe nos pisos superiores, em obras como Cenário #2, de Miguel Palma ou Harmonia, de Susana Gaudêncio.

Dedicamos ainda uma seção à abordagem contemporânea da paisagem, com obras de Rita Carreiro, de João Queiroz, Rui Algarvio ou Fabrizio Matos. Aqui o retorno a um estado de total comunhão (ou sintonia) com a natureza parece evidente.

A Coleção Norlinda e José Lima, pela sua dimensão e valor artístico, permite uma multiplicidade de abordagens. Desta vez, partimos de uma seleção de obras desta Coleção, para refletirmos sobre a paisagem, para refletirmos sobre a relação que o humano estabelece com o seu envolvente - ser ou não ser (uma paisagem), eis a questão.

Raquel Guerra

Abril de 2015