"Projecto: Fabricar", in Catálogo da Exposição Colectiva "Projecto fábrica", organizada pelo Laboratório das Artes, Guimarães.

Projecto: Fabricar

Projecto Fábrica surge da vontade do grupo Laboratório das Artes em reorganizar a cartografia do circuito artístico nacional, colocando neste novo mapa a cidade de Guimarães.
Dando seguimento a um projecto iniciado em 2006, e que se materializou na exposição "Teleférico", este grupo mais uma vez se apodera de um espaço singular na cidade - uma antiga fábrica de curtumes, subvertendo, assim, o tradicional mecanismo de apresentação/exposição em espaços convencionais.

Numa cidade, há sempre espaços por domar, espaços que, à partida, parecem uma escolha improvável para a realização de uma exposição. Esta estrutura fabril, inactiva, inerte, é um desses espaços. Sobrevivente ao seu tempo, esta unidade carecia de movimento, interacção. A intervenção destes 19 artistas veio trazer um sopro de vida a este local. Cada um deles foi convidado a desenvolver uma relação com o espaço, conferindo-lhe vitalidade e apresentando, sempre que possível, peças inéditas ou que se actualizam nesta nova montagem.

Convido o leitor a visitar a exposição, através destas páginas. Não quero, de forma alguma, impor percursos, forçar leituras, sendo que qualquer viagem é tão possível quanto aquela que aqui vou apresentar.

Inicio a visita com a instalação "Everyone needs protection #'2", de Luís Ribeiro - que utiliza, na concepção desta peça, objectos abandonados na fábrica. Os cacifos deitados, a escada que nos conduz a uma saída impossível, a parede vermelha, da qual, e de forma serial, pendem capacetes que deveriam, idealmente, estar a ser utilizados por trabalhadores, convidam-nos à reflexão sobre a fragilidade social à qual a falência, e consequente perda do posto de trabalho, nos pode remeter.
José Barbosa, em "Reunião", cria uma situação de impossibilidade, vedando o acesso ao sedutor interior da sala de reunião. Trata-se de uma alusão à dificuldade de diálogo com algumas instituições culturais.
As questões relacionadas com a entrada de verbas, provenientes de subsídios da UE, são abordadas por Nuno Florêncio em "Ovos de Ouro". O artista deseja colocar o espectador a pensar sobre a forma como esses subsídios foram utilizados pelas empresas, ironizando com o facto de estes apoios financeiros terem funcionado, para muitos empresários, como verdadeira galinha dos ovos de ouro que, à semelhança do passado, não soubemos aproveitar.
Em "Cedo se faz o tarde sentir", há um diálogo quase directo entre as características da sala de projecção e a própria peça. A paisagem fluvial presente na obra prolonga-se pelo espaço expositivo na humidade das paredes. André Alves apresenta-nos 16 minutos de tensão.
André Banha marca presença com "Abrigo-me #'5". O carácter escultórico deste trabalho impregna o espaço. Se o título da peça nos remete para a ideia de necessidade de protecção, a forma poderá induzir-nos a pensar que estamos perante um posto de vigia, de controlo (sobre os trabalhadores) , uma estrutura de observação que permite uma visão quase total - tudo ver para tudo controlar.
Pedro Portugal apresenta uma muito pertinente remontagem de uma peça de 1998. "Pillowtaur", embora não tendo sido concebido para esta exposição, é um trabalho que nos remete imediatamente para a indústria dos curtumes pela aproximação formal da peça a peles de bovinos. A luz vermelha que incide sobre Pilowtaur, provoca-nos, ao mesmo tempo, uma sensação de conforto (pelo calor da luz) e de repulsa (associação ao sangue no matadouro).
Susana Chiocca apresenta na instalação "Em Suspenso" várias possibilidades de leitura. Por um lado, a utilização de materiais como o cimento, a areia e a água remete-nos para um processo de (re)construção (da fábrica), por outro, esse processo só é necessário dado o estado de degradação do edifício. Ou seja, uma acção desencadeia a outra. A ideia de paisagem natural e urbana (fabril) também está presente neste trabalho da artista pela utilização de elementos destas duas realidades. O desenho projectado na parede lembra-nos uma paisagem familiar, conhecida, como se fosse a paisagem visível através do vidro do automóvel no qual fazemos uma viagem.
'Desenho executado por Outro Artista" resulta de uma colaboração entre Ana Santos e Pedro Barateiro.
Ana realiza uma performance no dia da inauguração, utílízando o corpo como objecto de construção da obra de arte. O resultado é uma peça com um carácter marcadarnante escultórico.
A questão da protecção também é abordada por Xico. O artista utiliza uma estrutura pré-existente, semelhante a um tanque, que cobre com plástico. Desta forma cria uma espécie de estufa, local de protecção.
Jorge de Magalhães apresenta uma sátira ao mercado da arte em Portugal. Com a peça 'Portugues Art to Export" o artista, que apresenta caixas de cartão empilhadas sobre paletes de madeira, coloca ironicamente o objecto artístico no patamar de uma qualquer mercadoria, chamando a atenção para a subvalorização da produção artística nacional face ao que é feito lá fora.
A referência a Charles Ray nesta peça de Paulo Mendes, intitulada Plataforma de Produção / Plank Production, permite a reflexão em torno de questões do trabalho do operário. O artista confronta-nos, assim,
com a ideia de produção em massa, em série, bem como com a ideia da exploração operária ,
Distanciamento é o principal conceito presente na intervenção mural de José Almeida Pereira. O artista utiliza um elemento que nos remete imediatamente para um chat. Assim, na era da comunicação, facilitada por realidades como a Internet e o e-mail, "Sem rede", apresenta-se-nos como uma reflexão sobre a a qualidade da comunicação. Estaremos realmente a comunicar?
Completámos a primeira parte do percurso. A visita continua. Seguimos agora para os antigos escritórios da fábrica.
Numa das paredes de uma das salas, Paula Tavares apresenta a instalação "Fábrica", na qual utiliza pão para formar a palavra que dá título à peça. No dia da inauguração uma performer, vestida de operária, oferecia panfletos denunciadores da discriminação das mulheres no que diz respeito a questões laborais. A utilização de um material orgânico, e como tal perecível, na realização da peça remete-nos para a precariedade das relações laborais. Ao longo da exposíção alguns dos pães destacaram-se da parede, a obra ganhou vida própria, e, ainda que involuntariamente, reforçou a alusão à precariedade, à falência.
"O murro de Courbet" é uma homenagem de Pedro Cabral Santo ao pintor do Realismo. Esta referência é pertinente num espaço como a Fábrica, já que Courbet foi um dos pintores que melhor retratou a dura realidade do trabalhador. O carácter solene da peça é acentuado pela sua forma - remete-nos para os monumentos comemorativos do Antigo Egipto, os obeliscos. A carga social e política desta obra é reforçada pela introdução de um elemento que foi um veículo de propaganda - o rádio.
Gabriela Vaz Pinheiro apresenta uma obra mutante. Em "Adopte-me", a artista convida o visitante a levar uma das árvores de fruto - metaforiza, assim, a dicotomia entre o natural e a experiência artística.
Dalila Gonçalves apresenta "Salário" (sal, sacos de polipropileno). A obra remete-nos para um tempo em que o sal era utilizado como forma de pagamento. Há um diálogo directo entre a peça e as características do lugar em que se encontra - o escritório, local de pagamento.
A alienação social é o conceito focado por Vera Mota em "Fentatíl ', A artista, dando continuidade ao trabalho que tem vindo a desenvolver, utiliza o seu corpo, deixando-se fotografar durante uma operação a que foi sujeita. Esta peça é um convite à reflexão sobre o papel que pretendemos desempenhar no tecido social - seres activos e conscíentes ou corpos anestesiados?
A obra de Francisco Queirós, 'Peter Pan", remete-nos para um mundo onírico e irreal, à semelhança do trabalho anterior, trata-se de uma alusão ao mundo de seres adormecidos.
A visita aqui proposta através de 'Impnrt/Export', termina na instalação-cenário realizada por Baltazar Torres. O atelier é o espaço expositivo, local de experiência, porto de abrigo.
Terminamos a visita à exposição. Espero que no final tenha contribuído para despertar vontades e motivar interesses, porque o importante é partilharmos pontos de vista.